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O que mudou no jornalismo científico com a pandemia de covid-19?

por Luiz Felipe Fernandes Neves*


As vacinas contra a covid-19 arrefeceram os casos e as mortes provocados pela doença em todo o mundo, contribuindo para controlar a maior crise sanitária da história recente. Hoje, quase três anos após a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 11 de março de 2020, a enfermidade parece ter sido incorporada às preocupações da vida cotidiana, embora novas ondas estejam sendo registradas periodicamente em função de subvariantes do coronavírus SARS-CoV-2 (OLIVEIRA, 2022).

Durante mais de um ano, a pandemia também foi pauta uníssona nos meios de comunicação. Pesquisas feitas no início da crise revelaram que, em meio aos dados incipientes sobre a nova doença, veículos tradicionais, como jornais e emissoras de TV, estiveram entre as principais fontes de informação do público (CASERO-RIPOLLÉS, 2020; VAI et al., 2020). Mas como esses meios de comunicação, cuja matéria-prima essencial é o jornalismo, lidaram com as particularidades dessa temática, sobretudo em relação ao seu aspecto científico?


Guiados por essa e outras indagações, temos realizado uma série de estudos no escopo do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT). Em um deles, analisamos comparativamente 2.120 matérias jornalísticas sobre o tema vacina publicadas pelos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo em 2019 e 2020, ou seja, antes da pandemia e durante o primeiro ano de pandemia (NEVES; MASSARANI, 2022). Nosso objetivo foi observar os impactos e as mudanças que uma grave crise sanitária teria provocado na cobertura jornalística de um tema ligado à ciência e à saúde, como a vacina, a partir de dois importantes jornais brasileiros.


Empregamos uma abordagem metodológica que nos permitisse analisar todas as publicações relacionadas ao tema em questão. Sendo assim, procedemos a uma análise de conteúdo assistida por computador. Trata-se de uma abordagem similar à análise de conteúdo tradicional, em que um texto é sistematicamente classificado em categorias de interesse e são feitas inferências a partir das características identificadas. A diferença é que, diante de um corpus de mais de 2 mil textos, essa categorização foi feita com o auxílio de um software.


De forma indutiva e dedutiva, criamos o que se entende por dicionário de categorização, com categorias e subcategorias temáticas, no interior das quais foram incluídos elementos textuais (palavras, frases, excertos e regras de proximidade), para que suas frequências no corpus fossem calculadas pelo programa (DENG et al., 2018). A criação de um dicionário de categorização foi um processo imersivo, iterativo e criterioso, ao fim do qual chegamos a três grandes categorias – Doenças e Vacinas; Abordagens; Organizações, Países e Atores –, cada uma composta por diversas subcategorias.


O primeiro e mais óbvio resultado observado foi o aumento no número de matérias sobre vacina. Embora o tema esteja rotineiramente presente no noticiário, ele se torna foco de especial atenção a partir de 2020 por ser uma das principais formas de controlar a crise sanitária. Isso nos revela como, em tempos não pandêmicos, a cobertura sobre vacina obedece prioritariamente à chamada factualidade jornalística, ou seja, são geralmente notícias e reportagens baseadas em fatos pontuais, “do dia”, como uma campanha de vacinação, por exemplo. No jargão jornalístico, a matéria factual se contrapõe à matéria fria, que não necessariamente está ligada a um fato que está ocorrendo naquele determinado momento.


Dessa forma, caracterizamos a cobertura sobre vacina em 2019 como sendo essencialmente de prestação de serviço (EIDE; KNIGHT, 1999), ao apresentar para os leitores serviços como o período de imunização a uma determinada doença e o público para o qual ela é destinada. E aqui está a principal mudança em relação ao primeiro ano de pandemia de covid-19: a passagem de uma abordagem da vacina na perspectiva da prestação de serviço para a do jornalismo científico de forma mais estrita.


Com um tema dominante na agenda pública dos meios de comunicação, entram em cena detalhes sobre o desenvolvimento de um novo imunizante, como as fases de testes, a eficácia e segurança, os mecanismos de ação de uma vacina e os processos de aprovação e registro. Também há aumento na abordagem econômica, que envolve capacidade de produção, custos e acordos para aquisição de doses. Em matérias como “Entenda as regras da Anvisa para o uso emergencial de vacinas contra a covid-19” (MACHADO, 2020) e “Como está sendo desenvolvida a CoronaVac, a vacina chinesa contra o vírus” (SANTOS, 2020), os jornais se propõem a explicar detalhes técnicos e científicos relacionados ao assunto.


Destaca-se ainda a diversidade de organizações, países e atores na cobertura dos dois jornais entre um ano e outro. Os imunizantes agora têm nome e nacionalidade, mas essa atribuição varia de acordo com as escolhas editoriais, como mostrado no exemplo anterior da “vacina chinesa” e nos seguintes títulos: “Governo de SP festeja sucesso de vacina da Pfizer, mas diz que CoronaVac está ‘mais adiantada’” (RESK, 2020); “Vacina russa produz imunidade contra novo coronavírus, mostram primeiros dados publicados” (BATISTA, 2020).


Nesse cenário, estão em disputa os interesses de autoridades, grandes potências mundiais e gigantes da indústria farmacêutica na “corrida pela vacina” – uma metáfora da velocidade e da competição identificada em nossa pesquisa anterior com jornais do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido (MASSARANI; NEVES, 2021). Portanto, a vacina, enquanto um produto que segue as regras da economia de mercado, caracterizada pela demanda mundial a um item escasso, sai de um contexto local para um contexto de interesse internacional, no âmbito de um sistema globalizado de produção do conhecimento científico.


Já no cenário interno, apesar de uma razoável redução das menções a entidades e órgãos governamentais como um todo, a presença bem mais expressiva do Legislativo e, principalmente, do Judiciário, revela como a pandemia no Brasil envolveu as diferentes esferas do poder público. Os atores que passam a ganhar mais destaque também são indícios de uma cobertura mais personalizada e politizada, caracterizada pela presença de autoridades do mundo político (CHINN et al., 2020). Antes da pandemia, o noticiário do Estadão e da Folha sobre vacina faz pouca menção a nomes específicos, o que muda com o antagonismo público e declarado entre Bolsonaro e Doria no ano seguinte, e faz com que esses atores apareçam com mais proeminência.


Portanto, o conjunto dos nossos resultados aponta para grandes mudanças: ampliação da abordagem científica sobre a vacina, para além da importante e necessária prestação de serviço; a vacina deixa de ser vista como um produto acabado, prontamente disponível nas unidades de saúde, para ser uma tecnologia em constante desenvolvimento; os meios de comunicação passam a abordar os processos da ciência, que envolvem aspectos políticos, econômicos e ideológicos, dos quais participam diferentes atores. Em um aspecto mais amplo, a própria ciência passa a ser percebida como uma atividade que não está confinada aos limites do laboratório e isolada do restante da sociedade.


A grande questão que estudos subsequentes podem se aprofundar é se essa mudança será pontual ou se a pandemia de covid-19 representa uma mudança de paradigma no jornalismo científico e na compreensão pública da ciência – e se essa mudança se deu de forma mais positiva ou negativa. Afinal, se muito se fala nas lições da pandemia para a saúde pública, é premente também avaliarmos o que aprendemos (ou não) com ela em termos comunicacionais.


Referências


BATISTA, E. L. Vacina russa produz imunidade contra novo coronavírus, mostram primeiros dados publicados. Folha de S. Paulo, 4 set. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/vacina-russa-produz-imunidade-contra-novo-coronavirus-mostram-primeiros-dados-publicados.shtml. Acesso em: 8 nov. 2022.


CASERO-RIPOLLÉS, A. Impact of Covid-19 on the media system. Communicative and democratic consequences of news consumption during the outbreak. El Profesional de la Información, Barcelona, v. 29, n. 2, 2020. DOI: https://doi.org/10.3145/epi.2020.mar.23.


CHINN, S.; HART, P. S.; SOROKA, S. Politicization and polarization in climate change news content, 1985-2017. Science Communication, Thousand Oaks, v. 42, n. 1, p. 112–129, 2020. DOI: https://doi.org/10.1177/1075547019900290.


EIDE, M.; KNIGHT, G. Public/private service: service journalism and the problems of everyday life. European Journal of Communication, London, v. 14, n. 4, p. 525–547, 1999. DOI: https://doi.org/10.1177/0267323199014004004.


MACHADO, R. Entenda as regras da Anvisa para o uso emergencial de vacinas contra a Covid-19. Folha de S. Paulo, 4 dez. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/entenda-as-regras-da-anvisa-para-o-uso-emergencial-de-vacinas-contra-a-covid-19.shtml. Acesso em: 8 nov. 2022.


MASSARANI, L.; NEVES, L. F. F. Communicating the “race” for the COVID-19 vaccine: An exploratory study in newspapers in the United States, the United Kingdom, and Brazil. Frontiers in Communication, Lausanne, v. 6, 2021. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fcomm.2021.643895/full. Acesso em: 8 nov. 2022.


NEVES, L. F. F.; MASSARANI, L. A vacina em dois jornais brasileiros antes e durante a covid-19. Matrizes, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 191–216, 2022. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v16i2p191-216.


OLIVEIRA, I. Estamos vivendo uma nova onda de casos de Covid, diz pesquisador da Fiocruz. CNN, São Paulo, 12 jun. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/estamos-vivendo-uma-nova-onda-de-casos-de-covid-diz-pesquisador-da-fiocruz/. Acesso em: 8 nov. 2022.


DENG, Q. et al. Inside the Black Box of Dictionary Building for Text Analytics: A Design Science Approach. Journal of International Technology and Information Management, San Bernardino, v. 27, n. 3, p. 119–159, 2018. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/212814535.pdf. Acesso em: Acesso em: 8 nov. 2022.


RESK, F. Governo de SP festeja sucesso de vacina da Pfizer, mas diz que CoronaVac está “mais adiantada”. O Estado de S. Paulo, 2020. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-de-sp-festeja-sucesso-de-vacina-da-pfizer-mas-diz-que-coronavac-esta-mais-adiantada,70003507678. Acesso em: 8 nov. 2022.


SANTOS, D. P. Como está sendo desenvolvida a CoronaVac, a vacina chinesa contra o coronavírus. O Estado de S. Paulo, 12 dez. 2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/como-esta-sendo-desenvolvida-a-coronavac-a-vacina-chinesa-contra-o-coronavirus/. Acesso em: 8 nov. 2022.


VAI, B. et al. Risk perception and media in shaping protective behaviors: Insights from the early phase of COVID-19 Italian outbreak. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 11, p. 563426, 2020. DOI: https://doi.org/10.3389%2Ffpsyg.2020.563426.


*Dados biográficos do autor

Luiz Felipe Fernandes Neves é doutorando em Ensino em Biociências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na linha de pesquisa Divulgação, Popularização e Jornalismo Científico. Pesquisador visitante na University of Exeter (Reino Unido). Mestre em Comunicação e Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Jornalista na Secretaria de Comunicação da UFG.

E-mail: luiz.felipe@ufg.br https://orcid.org/0000-0002-5994-9494

 

Como citar:


NEVES, Luiz Felipe Fernandes. O que mudou no jornalismo científico com a pandemia de covid-19? Ciência da Informação Express, Lavras, v. 3, 14 nov. 2022.

 

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